Por: Arthur Posser Tonetto
Desde a formação do Estado Liberal quando do início do período Moderno, os três Poderes propostos por Montesquieu vêm alternando suas atuações enquanto protagonistas das ações tomadas pelos Estados-Nação. Se no Estado Liberal coube ao Legislativo a missão de limitar a atuação do monarca e selar o derradeiro destino do absolutismo, o Estado Social viu na figura do Chefe do Executivo o garantidor dos direitos sociais tão caros ao cidadão.
Nos tempos atuais, no Estado Democrático de Direito – tardio no Brasil – coube ao Poder Judiciário a missão de zelar pelos direitos e garantias constitucionalmente estabelecidos, uma espécie de guardião da Constituição Federal.
Não obstante, tenho sido contumaz crítico da atuação do Supremo Tribunal Federal, assim como do atual sistema de vinculação de determinados provimentos oriundos daquela Corte, os quais alguns autores vêm confundido com o sistema de precedentes judiciais vigorante nos países do common law.
Isso porque a Suprema Corte extrapola seu papel contra majoritário no Estado Democrático, ultrapassa o limite de sua atuação e impõe determinados provimentos contrários à lei vigente que, é certo dizer, não contrariam a Constituição.
Sendo assim, para muito além do exercício de julgar e de defender a Constituição por meio da atuação contra majoritária, o que se faz declarando inconstitucionais determinadas normas que manifestamente vão de encontro à regra ou à carga principiológica da Carta Maior, o STF tem criado provimentos com a finalidade de reger condutas individuais e coletivas, função precípua do Legislativo, membros legitimamente eleitos pelo povo e representantes do próprio povo, o que não é o caso dos nobres Ministros da Suprema Corte.
Dito isso, com pesar concluo que a Suprema Corte, no atual sistema, adquiriu espécie de superpoder se comparada aos outros Poderes do Estado, parecendo não mais haver limites a sua atuação. Apossando-me da alcunha forjada por Lenio Streck, pergunto: quem vai nos salvar de nossos próprios salvadores?
No que diz respeito ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4467, entendeu o STF, em sede de liminar, que o artigo 91-A da Lei nº 9.054/97, com redação da Lei nº 12.034/09, deve produzir eficácia apenas no que se refere à obrigatoriedade de que o eleitor apresente documento oficial com foto, não perfazendo impedimento ao voto caso o cidadão não esteja portando o título de eleitor, como é a redação original do dispositivo que, diga-se, continua vigente. Noutras palavras, enquanto a própria lei diz ser necessária a apresentação de título de eleitor e documento oficial com foto, resolveu a Suprema Corte pela desnecessidade de apresentação do título de eleitor.
Ao leitor menos atento, pode parecer desnecessária a discussão, porquanto em sua superfície pareça ser de fácil resolução a problemática. Bastaria, meramente, extinguir-se o título de eleitor, bastando que o cidadão mantenha atualizado seu documento oficial com foto, seja carteira nacional de habilitação, identidade civil ou militar, ou mesmo passaporte.
Não é essa, no entanto, a razão pela qual me debruço sobre o assunto – que há uma década ainda carece de definição. Questiono a legitimidade de o STF analisar tal matéria.
Ora, que há de inconstitucional no Artigo 91-A da Lei nº 9.054, ao estabelecer enquanto norma a exigência de que o eleitor, ao votar, apresente seu título e documento de identificação com foto? Por mais que tente, não vislumbro qualquer indício que demonstre estar o dispositivo maculando o texto constitucional.
Neste diapasão, retorno às palavras redigidas no início desta coluna. Ainda que ao STF tenha tocado a função de guardar a Constituição e assim preservar o Estado Democrático de Direito, é necessário que se estabeleça o limite de referida atuação.
Não é que se queira retornar ao positivismo e ao juiz-boca-de-lei da Escola da Exegese, mas é a lei, porquanto formulada por aqueles que representam o povo, que deve estabelecer como deve se comportar o particular perante o Estado e perante os demais, pois que é a lei que reflete o interesse social predominante, não o provimento vinculante. E reforço, não há inconstitucionalidade no artigo 91-A da Lei nº 9.054.
Deve continuar o STF a exercer o poder contramajoritário, preservando assim a Constituição, ao declarar inconstitucionais eventuais leis formadas por “maioriais ocasionais”, apropriando-me dos escritos do Ministro Barroso, como foi o caso do julgamento sobre o regime inicial de cumprimento de pena em crimes hediondos, precursor da Súmula Vinculante nº 26, ou do reconhecimento da possibilidade das uniões homoafetivas, atuações estas que contribuem para a consolidação das regras e princípios constitucionais.
O que se deve combater, entretanto, é que se legisle por meio de provimentos vinculantes. Tal função não cabe ao Supremo Tribunal Federal.
REFERÊNCIAS
BARROSO, L. Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2018 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. In: Vade Mecum Exame da Ordem e concursos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
BRASIL. Lei nº 9.504 de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9504compilado.htm. BRASIL. Lei 8.702 de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. In: Vade Mecum Exame da Ordem e concursos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.467 Distrito Federal. Relator: Min. Rosa Weber, 24 de setembro de 2010. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADI&documento=&s1=4467&numProcesso=4467.
MONTESQUIEU, C. L. de S. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979.