Segundo decisão da mais alta corte alemã, direito à informação suplanta o dos indivíduos que queiram proteger dados pessoais. Justiça deve analisar cada caso sobre aplicabilidade do “direito de esquecer”.
A decisão foi difícil e se estendeu por três instâncias, mas o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (BGH) (equivalente ao Superior Tribunal de Justiça do Brasil) decidiu: o direito do público à informação se superpõe ao direito de indivíduos que desejem proteger seus dados pessoais na internet.
O BGH julgou improcedente a ação judicial movida pelo ex-diretor de uma instituição de caridade do estado alemão de Hessen contra a gigante Google. Assim, o mecanismo de busca pode continuar exibindo em seus resultados os artigos publicados pela imprensa na época sobre um déficit financeiro da associação e o pedido de afastamento por doença do autor da ação.
De acordo com o BGH, não existe na internet um “direito de ser esquecido” quando se trata de mecanismos de busca como o Google, e a Justiça terá que analisar cada caso individualmente para decidir se links de textos contendo críticas devem ser removidos da lista de resultados.
O BGH apresentou um segundo caso sobre o “direito de ser esquecido” ao Tribunal de Justiça da União Europeia (EuGH), com sede em Luxemburgo. Na ação, é contestada a veracidade dos resultados mostrados pelo mecanismo de busca.
A decisão dos juízes era aguardada com grande interesse por ser a primeira sentença da suprema corte da Alemanha desde a entrada em vigor, em 2018, do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), aplicado em toda a União Europeia.
Ele concede aos cidadãos amplos direitos sobre as empresas de dados. O Artigo 17 é crucial, explica Christian Solmecke, especialista em direito da internet baseado em Colônia, no oeste do país: “Qualquer pessoa pode pedir ao responsável pelo processamento de dados que as informações pessoais sejam deletadas imediatamente.”
O caminho para esse direito fundamental de ser esquecido foi pavimentado por uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, em 2014. O ponto de partida foi um caso típico: um espanhol havia processado a Google, pois, quando digitava seu nome no mecanismo de busca, era levado a um artigo do jornal La Vanguardia que informava sobre um leilão compulsório de um apartamento, em que seu nome é citado como proprietário do imóvel.
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Entretanto uma década se passara, e há muito o homem estava livre de dívidas. Por causa dos resultados da busca no Google, ele temia ter desvantagens econômicas, e entrou na Justiça. Os juízes do Tribunal de Justiça da União Europeia lhe deram razão e, desde então, os cidadãos podem exigir que mecanismos de busca excluam informações pessoais sensíveis.
Os cidadãos da União Europeia exercem ativamente esse direito, como mostra o Relatório de Transparência da Google. Desde 2014, quase 1 milhão pediram à gigante da internet para excluir 4 milhões de links de suas listas de resultados.
Em quase a metade dos casos, os operadores dos sistemas de busca cumpriram as exigências. A solicitação mais comum era remover os links direcionados para o Facebook. Cerca de um em cada seis endereços foi excluído por reclamações vindas da Alemanha.
Um professor, por exemplo, foi bem-sucedido com seu pedido: o link para um artigo relatando sua condenação por um crime há mais de uma década não aparece mais nos resultados quando se busca por seu nome. Uma vítima de estupro também conseguiu a remoção do link de um artigo de um jornal sobre o crime sofrido.
Por outro lado, um padre não conseguiu excluir das buscas duas notícias tratando de acusações de abuso sexual contra ele. A justificativa é que o Google classifica as informações como relevantes para a vida pública do padre. Além disso, a Igreja ainda não havia concluído a investigação do caso.
“Data de validade digital”
“Esquecer é uma característica, não um erro”, afirmou Viktor Mayer-Schönberger em entrevista à DW. O pesquisador do Instituto da Internet, da Universidade de Oxford, é um dos pioneiros do “direito de ser esquecido”.
Em seu livro “Delete. A virtude do esquecimento na era digital” (em tradução livre), Mayer-Schönberger já havia descrito em 2010 os perigos associados ao armazenamento ilimitado de dados e o fato de que eles podem ser encontrados pelos mecanismos de busca, pois, com um clique de mouse, eventos podem ser trazidos ao presente que uma sociedade analógica teria esquecido ou nunca teria encontrado. Mas a internet documenta tudo de forma indiscriminada e sem fornecer contexto.
O esquecimento pode ser tão importante, por exemplo, para um recomeço frutífero. Os diplomatas que negociaram a Paz de Vestfália na cidade de Münster, selando assim o fim da Guerra dos Trinta Anos, sabiam disso há mais de três séculos e meio. A Paz de Vestfália estipula nada menos que “um perpétuo esquecimento, anistia ou perdão de tudo o que foi cometido desde o início do conflito”.
Na medicina, há uma analogia para a incapacidade da internet de administrar memórias de forma mais significativa: a “síndrome hipertimésica” é usada para descrever o sofrimento de pessoas que não conseguem esquecer nada, nem mesmo os mínimos detalhes e estão permanentemente sobrecarregadas por suas memórias. Assim, elas precisam reviver constantemente o passado e não conseguem controlar suas memórias.
Essa doença acomete raramente os humanos. No entanto, devido à internet e aos mecanismos de busca, sociedades inteiras estão agora sofrendo com isso: o relevante não pode mais ser distinguido do sem importância, do desatualizado e do ultrapassado.
O especialista em internet Mayer-Schönberger está satisfeito com a atenção que o julgamento no Tribunal Constitucional Federal da Alemanha deu à importância do esquecimento nos tempos digitais: as soluções legais são apenas uma solução provisória, porque “somente aqueles que podem pagar podem exigir e fazer valer esse direito”.
O advogado Solmecke concorda, acrescentando que quem quiser que o Google apague um link da lista de resultados da busca deve ter muita paciência. “Não é raro o Google não reagir a um pedido de exclusão ou se opor completamente a ele”, afirma o especialista em direito na internet.
Portanto, Viktor Mayer-Schönberger defende uma “prática de esquecimento” promovida por processos e ferramentas técnicas – ou seja, uma “data de validade digital”. Ele usa como exemplo o aplicativo de mensagens Snapchat, que elimina automaticamente o conteúdo compartilhado após um curto período de tempo. E é, portanto, um exemplo de uma forma de comunicação transitória e que também “esquece”.
Na era da big data e do aprendizado de máquinas, a pesquisa moderna está caminhando também nessa direção. “Os melhores algoritmos para o aprendizado de máquinas são aqueles que levam menos em conta os dados antigos – ou que os esquecem completamente”, acrescentou. Talvez, mais cedo ou mais tarde, processos como os que estão no Tribunal Constitucional Federal da Alemanha sejam resolvidos por si só.