Desde o final de maio deste ano, uma série de protestos contra o racismo ganharam força no mundo. O estopim foi a morte de George Floyd, um norte-americano negro assassinado por um policial branco em Minneapolis.
Dentre as inúmeras denúncias feitas de lá para cá, há uma já bastante conhecida: a quase ausência de negros em cargos considerados elitizados. E se essa é uma verdade em grande parte dos setores, não seria diferente nas bancas de advocacia e na magistratura.
Um levantamento feito pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) em 2019 apontou, por exemplo, que os negros representam 1% dos advogados de grandes escritórios. Na ocasião, a instituição avaliou, em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, nove bancas de São Paulo.
Esse dado, se comparado com a porcentagem de negros na sociedade (aproximadamente 55%, de acordo com o IBGE), evidencia um problema: ou os escritórios contratam menos negros ou as disparidades sociais — que afetam a população negra com maior intensidade — acabam fazendo com que grande parte deles fique no meio do caminho.
Haderlann Chaves Cardoso, do Mudrovitsch Advogados, enfatiza o segundo ponto. Para ele, o baixo número de negros nos grandes escritórios tem relação com a desigualdade socioeconômica e com o seu reflexo na formação dos profissionais.
“Há uma série de filtros. Não raramente, a população negra está em condições socioeconômicas menos favorecidas e tem muita dificuldade de acesso às escolas privadas, em que o ensino costuma ser melhor. Isso, por sua vez, acaba impactando na hora de entrar em boas universidades, que muitas vezes são públicas. Apesar do sistema de cotas proporcionar mais acesso às universidades estaduais e federais, muitos negros acabam indo para as faculdades particulares, o que impõe um novo filtro: é preciso pagar e é caro. As que são mais baratas tendem a ter uma qualidade menor, o que impõe mais uma dificuldade: passar no exame da OAB”, diz.
Haderlann, que é negro, estudou a vida inteira em escolas públicas. Ele conta que concluiu a universidade graças a uma bolsa de 50%, obtida por meio do ProUni, programa criado em 2004 pelo Ministério da Educação.
Em 2012, quando estava no terceiro semestre de Direito, conseguiu estágio no escritório em que atua ainda hoje. Em 2015, no nono semestre, obteve aprovação no exame da Ordem. O advogado diz, no entanto, que ele é quase uma exceção.
“Estudei em uma universidade que está entre as três melhores do Distrito Federal. Às vezes, era o único negro na sala de aula, mesmo tendo cerca de 10 turmas de Direito. Por todas as dificuldades que mencionei, os negros às vezes não chegam sequer a entrar nas universidades, o que impacta no número de advogados, mesmo que autônomos.”
Mercado
A advogada Angela Borges Kimbangu não ignora os impactos da desigualdade socioeconômica. No entanto, segundo ela, o mercado jurídico incorpora, sim, um número menor de negros.
“Eu comecei a conversar com as mulheres pretas — com os homens também — e percebi que todas elas passavam por grandes peneiras mas não eram contratadas. Quando você é preto no mundo e vira advogado, é como se parte da sociedade não quisesse que você estivesse em um lugar que sempre foi majoritariamente branco”, afirma.
Pensando nisso, Angela se uniu a outras quatro colegas e fundou, no Rio de Janeiro, o Borges & Mariano Advogadas Associadas. Além dela, a banca foi concebida pelas advogadas Andrea Nascimento, Carmen Felippe, Giovana Mariano e Maria Ferreira. Em funcionamento desde o começo de 2019, o escritório atua em diversas áreas do Direito, como cível, empresarial e Direito de Família.
“Por causa dessa dificuldade no mercado jurídico e pelo fato da gente ver que pretos não têm espaço nos grandes escritórios, cheguei à conclusão de que a gente tinha que criar o nosso. E está dando muito certo”, afirma.
Sobre a atuação em uma área elitizada, conta que por vezes as pessoas não acreditam que ela é advogada. “Já me perguntaram até se eu sou advogada de verdade. Essa estrutura às vezes impede que olhem para mim e vejam que eu sou uma profissional e que posso fazer advocacia de qualidade como qualquer outra pessoa.”
Incluir Direito
Buscando ampliar a inclusão de estudantes negros em escritórios de advocacia, a Comissão de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), juntamente com a Fundação Arcadas, criaram o projeto Incluir Direito.
A iniciativa permite a capacitação orientada de estudantes do terceiro ao oitavo semestre e o aprimoramento dos departamentos de recursos humanos dos escritórios filiados ao Cesa para promover a inserção dos beneficiados pelo programa.
Um advogado apontado pelo centro de estudos fica responsável pelo acompanhamento do estudante durante sua permanência no projeto, explica Carlos José Santos da Silva, presidente nacional do Cesa.
“Dessa forma, será possível potencializar e direcionar as experiências, bem como aumentar a chance de sucesso desses alunos nas seleções dos escritórios envolvidos”, afirmou em março deste ano, quando o projeto foi anunciado.
A formação ocorre ao longo de um semestre, onde também são oferecidos cursos de idiomas aos participantes. Em contrapartida, eles devem assumir o compromisso de participar de ao menos três processos seletivos dos escritórios parceiros.
Inicialmente o Incluir Direito beneficia um máximo de dez alunos. “Nas edições subsequente o número de beneficiários poderá aumentar”, diz o professor Flávio Batista, um dos responsáveis pela iniciativa na FDUSP.
Fonte: Conjur