Por: Soraia Mendes – Professora da Pós-graduação em Ciências Criminais e Interseccionalidades da Verbo Jurídico.

Em poucas horas o Supremo Tribunal Federal retomará o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, ADO n. 26, conhecida por trazer à baila pedido de declaração da mora inconstitucional do Congresso Nacional em criminalizar LGBTIfobia.

E, mais uma vez, como sói acontecer quando demandas identitárias margeiam a costa do Direito Penal, poucas não são as críticas não só de grupos conservadores (o que já é o esperado em um debate público), mas também de setores mais, digamos, progressistas.​

Não guardei a escrita deste texto especialmente para este dia, no qual nossa Corte reinicia a discussão sobre o que, em minha ótica, acima de tudo, centra-se no direito a ser nominada a violência abjeta que muitas vezes culmina com a morte de milhares neste país em razão de gênero e sexualidade por trazer nele a defesa de uma causa como se minha fosse. ​

Não sou sujeito do discurso LGBTI. E penso (tento ao máximo fazer do pensar a prática) que o respeito às vozes dos/as sujeitos titulares desta causa é o que tem de nortear a posição de quem pretenda alçar a “sua voz” sobre este tema. Ainda mais quando esse discurso vem sob a designação de crítico, garantista, abolicionista, ou o que seja. Como mulher, cisgênero, reconheço que não é meu lugar de fala.​

Contudo, assim como compreendo que ninguém precisa ser mulher para lutar contra o machismo e o patriarcado, como jurista feminista que sou, carrego comigo a legitimidade de um discurso que interpreta o direito desde uma perspectiva crítica que não usa viseiras.

E daí porque quero destacar aqui três argumentos contrários à assim chamada “criminalização da homofobia” que emergem das trincheiras progressistas onde tenho parceiros e parceiras.​

O primeiro deles é de ordem dogmática, dizendo respeito à possibilidade de “criação de tipos penais por analogia” que, como muitos assim consideram, representa afronta ao princípio da legalidade.​

Há alguns anos tenho refletido e trabalhado sobre o necessário (re)pensar da estrutura garantista que, se por certo não pode ser abandonada, precisa ser submetida a um giro epistemológico desde perspectivas, igualmente democráticas, que emergem das experiências das mulheres, do povo negro ou, como agora, da comunidade LGBTI.

Em síntese, o que estou a dizer é que a tão só afirmação da legalidade estrita não é mais o suficiente para encerrar qualquer debate sobre outras possibilidades de criminalização de condutas quando em jogo encontram-se direitos humanos fundamentais.

Não tenho dúvidas do assombro, inconformidade ou, até mesmo indignação que estas afirmações poderão causar (ou causam) em muitos e muitas. Mas é preciso dizer que a contrariedade de criminalização da LGBTIfobia sustentada no argumento dogmático de proibição da analogia (tal como aponta o voto do Ministro Celso de Mello) não se sustenta epistemologicamente.​

Digo, com isso, que uma ordem verdadeiramente democrática a embalar as ações do parlamento, bem como as decisões judiciais, há de sustentar-se não na legalidade estrita como um dogma, mas em controles epistêmicos que emergem do conjunto do ordenamento jurídico protetivo dos direitos humanos que não se restringe tão somente à lei, mas abrange todos os tratados e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos dos quais nosso país é signatário.​

É de citar aqui que a lei costariquenha ao tipificar o feminicídio em 2007 restringiu muito seu campo de incidência tão somente aos casos em que houvesse relação conjugal pelo casamento ou união estável. Coube à Corte daquele país ampliar a definição legal do feminicídio (chamado femicídio ampliado) com base, fundamentalmente, no reconhecimento de que a hipótese prevista em lei (femicídio legal) era menor do que o previsto pela Convenção de Belém do Pará. Trata-se de um exemplo muito significativo (isso, claro, para quem considera válidas experiências jurídicas que estejam fora do eixo norte-europeu).​

Dogmas que não resistem a testes epistemológicos oriundos dos discursos de sujeitos vulnerados pelo conluio entre família, sociedade e Estado nada mais são do que isso, dogmas. E o lugar dos dogmas não é no Direito. Igrejas são mais adequadas para eles.​

O segundo argumento contrário à criminalização da LGBTIfobia pelo Supremo Tribunal Federal diz respeito ao medo de que esta brecha represente a abertura para que outras decisões da Corte venham a significar criminalizações em outros campos.

De todos, em meu entender, no momento atual, esse é o argumento mais perverso, posto que joga nas costas das lutas identitárias a responsabilidade por algo que o contexto político recente mostra ser anterior e completamente alheio às demandas judiciais das mulheres, dos/as negros/as, dos/as LGBTIs.​

Basta revisar a jurisprudência da Corte para que isso se comprove. Ou será que a demanda trazida hoje pelas lésbicas, gays, pessoas trans, bissexuais foi a responsável pelo ocorrido por exemplo nos autos da AP 470?

Se uma “brecha” foi aberta, esta não foi pelos movimentos identitários.​

Por último, ainda resta o argumento contrário de ordem político-criminal centrado na alegação do caráter simbólico da tipificação cujo efeito prático em termos protetivos não existiria.​

É fato. Mais uma vez, utilizando meu campo de discurso como exemplo, vivemos uma onda de feminicídios no Brasil (por sinal, como tenho dito eu, uma onda genocida), de modo que flagrantemente a lei que fez constar essa hipótese entre as qualificadoras do crime de homicídio não foi o suficiente para estancar essa forma culminante de violência de gênero. Há um caráter simbólico, sem dúvida.

Entretanto, assim como já muitas vezes escrevi em tantos lugares: o que não tem nome não entra no discurso porque não é político. E o que não é político não importa. Penso que vidas de pessoas trans, de gays, de lésbicas, de bissexuais importam.​

Se isso é simbólico, meramente simbólico, somente isso, para mim, já basta para dizer: criminaliza, sim, STF!​

Fonte: Carta Capital

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