O reconhecimento da existência de repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal, em um caso que trata da responsabilidade civil por disponibilização na internet de informações processuais publicadas nos órgãos oficiais do Poder Judiciário, sem restrição de segredo de justiça ou obrigação jurídica de remoção, ainda deverá ter desdobramentos vinculados à da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e suscitar discussões sobre o direito à informação.

Há uma semana, em processo concluído no Plenário Virtual, nove ministros do STF acolheram um voto do presidente Luiz Fux favorável ao acolhimento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.307.386. O ministro Marco Aurélio Mello foi vencido e o ministro Nunes Marques não se manifestou. O inusitado do julgamento é que o recurso foi ajuizado pela parte vencedora na instância de origem.

O caso teve início com uma ação ajuizada por uma pessoa contra os sites de busca Google e Escavador, em razão da divulgação de informações sobre uma reclamação trabalhista apresentada por ela. Sua alegação era de que a publicidade dada ao processo poderia estar inibindo empregadores de contratá-la, por medo de se tornarem réus em possível futura demanda trabalhista. Pedia, por isso, a condenação dos sites ao pagamento de indenização por dano moral e à exclusão das informações.

O pedido foi julgado improcedente na primeira instância e pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que, ao julgar incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), considerou lícita a divulgação de processos por sites de conteúdos judiciais que não tramitem em segredo de justiça. O pedido foi julgado improcedente na primeira instância e pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que, ao julgar incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), considerou lícita a divulgação de processos por sites de conteúdos judiciais que não tramitem em segredo de justiça.

Mesmo sendo vencedor, o site Escavador recorreu ao STF sob o argumento de que a decisão ficaria restrita geograficamente ao Estado do Rio Grande do Sul e queria validade para todo o território nacional, o que acabou sendo validado pelo voto do ministro Luiz Fux.

O advogado Afranio Affonso Fereira Neto, do escritório Affonso Ferreira Advogados, considera a decisão “absolutamente inédita” e acertada do ponto de vista jurídico por tornar o entendimento vinculante para todos os entes federativos. No caso específico, Fereira Neto diz que a vedação de veiculação de processos trabalhistas não é válida, como foi alegado pela defesa da pessoa que recorreu contra os dois sites. “Entendo a motivação de evitar ‘listas negras’, mas isto colide com o direito à informação, que é superior. A proteção da identidade, a meu ver, é questionável e sucumbe diante do direito de informação”, sustenta.

A advogada Estela Aranha, presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ e professora do Centro de Direito, Internet e Sociedade do IDP, chama a atenção para a autodeterminação informativa, que concede aos titulares dos dados pessoais um real poder sobre as suas próprias informações e um efetivo controle sobre seus dados. Este mecanismo está previsto na LGPD, que entrou em vigor no ano passado.

Segundo ela, o direito à privacidade e o direito à proteção de dados pessoais são distintos. O direito à privacidade trata da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e imagem, bem como da casa e do sigilo das telecomunicações. Trata-se de uma proibição da interferência estatal na vida privada, exceto excepcionalmente, desde que de acordo com a lei, por importante razão e legítimo interesse público.

“Com o advento da internet e do cada vez mais presente espaço digital, surgem novos riscos à vida privada relacionados à coleta e ao uso de dados e informações pessoais nesses ambientes, emergindo um novo conceito de privacidade: a privacidade informacional ou o direito à autodeterminação informacional”, sustentou a advogada em artigo recente. Ela também é presidente da Secretaria de Proteção de Dados e Direitos Fundamentais do Instituto Joaquín Herrera Flores e membro da IAPP (International Association of Privacy Professionals).

Em seu voto, o ministro Fux entendeu que compete ao Supremo definir o alcance e o sentido das normas constitucionais que garantem a publicidade dos atos processuais, do direito à informação e da segurança jurídica, considerado o direito à vida privada, especialmente no caso de processos trabalhistas e criminais, em que há restrição de pesquisa por determinadas informações, como o nome das partes, no âmbito dos tribunais.

O presidente do STF ressaltou, ainda, o potencial impacto em outros casos, tendo em vista a ininterrupta disponibilidade de conteúdo na internet e o crescente interesse em buscas refinadas de informações processuais, publicadas em diversos órgãos oficiais do Judiciário.

Fereira Neto entende que a LGPD “não pode suplantar a Constituição e a ela se submete, de acordo com o artigo 220 da CF”. “A LGPD não pode restringir outro princípio, o da publicidade dos atos processuais. Considero ruim não poder publicizar nomes de pessoas, a não ser no caso de decretação de segredos de Justiça. Nos demais processos, tem que haver publicidade, sim.”

Ambos os advogados consultados consideram positivo o fato de o STF ter declarado repercussão geral para o caso que deu origem a toda a discussão. “Ou se leva esta discussão para repercussão geral ou o Judiciário fica cada vez mais atulhado de ações. Havendo uma decisão superior, vai pacificar um tema que tem tomado muito tempo do Judiciário no Brasil inteiro”, diz Ferreira.

“É importante haver repercussão geral para haver segurança jurídica. O Judiciário tem uma tradição de transparência. Não necessariamente todos os dados trazem risco ou prejuízo para seus titulares. Alguns (dados) têm interesse público ou não se sobrepõem à garantia individual. O Judiciário precisa fazer uma adequação e uma análise de risco e, a partir disso, ver quais dados pode divulgar amplamente e outros que tragam problemas de discriminação”, diz Estela.

O tema já entrou na pauta de discussões do Conselho Nacional de Justiça. Em reunião no último dia 3 de maio, o conselheiro Rubens Canuto, desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, apresentou as iniciativas que vem sendo realizadas pelo CNJ na aplicação da LGPD.  Segundo ele, o Judiciário trabalha e armazena uma massa da dados imensa, seja em matéria administrativa, seja nas informações de natureza jurisdicional.

“Uma das grandes questões enfrentadas pelo CNJ diz respeito à possibilidade de anonimização da identificação dos juízes prolatores de decisões ou de sentenças ou de acórdãos, a fim de evitar a formação de perfis de julgamento e o eventual direcionamento da distribuição do processo àquele magistrado que tenha uma visão mais favorável ao autor daquela demanda”, explicou. E informou que se chegou a uma conclusão, não terminativa, de que no Brasil, a princípio, isso não seria possível, seja pelo princípio da publicidade ou da transparência.

“É um tema absolutamente novo, com todas as limitações de formas de trabalhar e o CNJ está muito atento a essa discussão porque a prestação jurisdicional não pode ser prejudicada”, afirma Estela.

FONTE: Conjur

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