Por Soraia Mendes – Professora da Pós-Graduação em Ciências Criminais e Interseccionalidades da Verbo Jurídico.

Recentemente aceitei um convite que muito me honrou para funcionar como perita em processo penal perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso 12.263 envolvendo o feminicídio (ainda que à época não fosse assim chamado) de Marcia Barbosa. O crime ocorreu na década de 90, na Paraíba. Teve como acusado o deputado estadual Aércio Pereira de Lima (hoje falecido). E a apresentação pela Comissão Intermericana de Direitos Humanos à Corte IDH deu-se pelo trabalho realizado pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Nesta fase atual, em resumo, o objetivo desta demanda internacional é a responsabilização do Estado brasileiro por suas ações e omissões que contribuíram decisivamente para a revitimização da vítima (em sua memória e imagem), bem como de seus familiares.

Os vários volumes que compõem o acervo trazem inúmeras questões sobre as quais, desde o ponto de vista do processo penal, é possível me debruçar e discorrer. Contudo, para os fins deste artigo, o que mais me interessa chamar atenção de quem neste momento o lê é como a vítima (seu comportamento, estilo de vida, possíveis sonhos, projetos, enfim…) torna-se o objeto central de preocupações desde o inquérito até o julgamento pelo tribunal do júri. Tudo isso muito em função do que passou a ser fomentado e/ou reproduzido via imprensa.

De fato, a desconstrução da imagem e credibilidade da vítima e, em última instância, de sua palavra dentro do processo, em crimes de gênero (feminicídios, estupros, importunações, assédios), de regra, tem início previamente ao próprio processo. Começa ainda durante a fase de investigações, ou, algumas vezes, como estamos presenciando neste exato momento, antes ainda.

Nos processos envolvendo crimes sexuais nunca valeu a máxima “o que não está nos autos não está no mundo”. Lá o que está no mundo é transplantado para dentro dos autos subliminarmente (embora, algumas vezes, escancaradamente, vide o caso Mariana Ferrer) sendo o que determina se “esta” ou “aquela” mulher “merece” crédito sobre o que diz.

A velha (infelizmente não carcomida) tática de valer-se da vida e comportamento de uma mulher como elemento de defesa é flagrante em casos de notoriedade como o que acima comentei estar sob análise na Corte Interamericana. Contudo, ela pode ser exemplificada em tanto outros mais recentes por entrevistas em que vítimas foram adjetivadas como prostitutas, garotas de programa etc., pelo gênero de quem se escolheu para estar à frente da defesa ou, como ocorreu na última semana, pela divulgação de mensagens privadas.

Sobre esse último episódio, no dia 15 de dezembro passado, mensagens de conteúdo particular chegaram ao conhecimento público via Folha de S.Paulo, mediante a matéria intitulada “Marcius Melhem mostra mensagens que sugerem amizade com Dani Calabresa. Diretor diz que atriz não pareceu traumatizada depois de suposto episódio de assédio sexual”.

Sob este título o destinatário e detentor das mensagens fez chegar ao conhecimento público não somente a transcrição do áudio, mas também a própria mensagem de voz enviada pela vítima via aplicativo WhatApp. Algo que tomou proporções gigantescas pela reprodução feita por outros tantos veículos de comunicação tais como Revista Veja, Correio Braziliense, IstoÉ, Revista Fórum etc.

Um tipo de divulgação amoldável aos contornos do crime preceituado no artigo 153 do Código Penal, vez que, sem nenhuma justa causa, conteúdo privado é exposto para fins de atingir a vítima. Um ato que, por sinal, sequer encontraria amparo em um suposto e inexistente direito de defesa “midiática”. Direito de defesa se exerce nos autos de um processo, diga-se, sigiloso em crimes sexuais, no qual, como já escrevi em inúmeras partes (vide Processo Penal Feminista) não pode ser levado a cabo com a violação da dignidade humana da vítima.

A regra é clara, diria o comentarista de arbitragem: a dignidade humana não pode ser violada! Essa é a regra do jogo, dentro e fora do processo.

Com a divulgação do conteúdo de mensagens trocadas na esfera particular o fim é, obviamente de causar extremo dano à vítima no intuito de macular sua imagem, confiabilidade pública e também, o que é mais grave ainda, de por em dúvida sua palavra enquanto vítima, lá, nos autos em que se discute o crime sexual. É deste modo que se constrói um processo onde o que passa a estar em julgamento não é mais a conduta do agressor, mas a “reputação” da mulher.

Assim como nos programas sensacionalistas da mídia — em particular de TV, em razão do impacto que a imagem causa — nos quais pessoas, negras e pobres na maioria, são encurraladas por um microfone colocado no rosto com perguntas vexatórias, enquanto no estúdio o apresentador diz: “mostra a cara do bandido, a gente quer ver a cara do bandido!”, nas manchetes sobre crimes sexuais as vítimas são apresentadas como quem não merece crédito, quem sobre cuja palavra paira dúvida. Um mecanismo perverso de datenização que cumpre a função de atingir a vítima direta e, também (!), de acuar outras que possam surgir em casos semelhantes.

Está mais do que na hora de que as regras do jogo, dentro e fora do processo, sejam respeitadas. Divulgar mensagens privadas não pode, não! Processo não é Balanço Geral.

Fonte: Conjur

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