Por: Cecília dos Santos Carvalho
Aluna de Pós-Graduação em Benefícios e Prática Previdenciária 2020/1, da Verbo Jurídico

Em decisão recentíssima (09/10/2020), o Supremo Tribunal Federal, por maioria (em votação bastante acirrada – seis votos a favor e cinco contrários), ao julgar parcialmente procedente a ADI 6096i, declarou inconstitucional o disposto no artigo 24 da Lei 13.846/2019, pontualmente no que diz respeito ao marco decadencial fixado na norma guerreada – qual seja, dez anos – para ajuizamento de ação visando a revisão dos atos administrativos previdenciários de indeferimento, cessação, restabelecimento ou de revisão de benefícios.
Assim, a redação original do artigo 103 da Lei 8.213/91 – Lei de Benefícios – foi restabelecida após o resultado do julgamento pela Suprema Corte acerca da matéria. Vale lembrar que a redação do artigo 24 da Lei 13.846/2019, objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), é oriunda da conversão da Medida Provisória nº 871, de 18 de janeiro de 2019, em lei. Antes do julgamento, assim dispunha o texto legal:

“Art. 24. A Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, passa a vigorar com as seguintes alterações:”
(…)
“Art. 103. O prazo de decadência do direito ou da ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão, indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício e do ato de deferimento, indeferimento ou não concessão de revisão de benefício é de 10 (dez) anos, contado:
I – do dia primeiro do mês subsequente ao do recebimento da primeira prestação ou da data em que a prestação deveria ter sido paga com o valor revisto; ou

II – do dia em que o segurado tomar conhecimento da decisão de indeferimento, cancelamento ou cessação do seu pedido de benefício ou da decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de benefício, no âmbito administrativo.

O advento da Lei 13.846/2019, de per si, foi bastante prejudicial aos segurados do Regime Geral de Previdência, trazendo muitas mudanças nefastas aos seus direitos ao alterar pontualmente as regras para concessão de alguns benefícios como, por exemplo, pensão por morte e auxílio-reclusão (exigindo ao companheiro a comprovação documental da união estável “contemporânea dos fatos”, produzida em período “não superior a 24 (vinte e quatro) meses anteriores à data do óbito ou encarceramento do instituidor”), a extinção da manutenção da qualidade de segurado aos beneficiários de auxílio-acidente, revisão ativa e constante dos benefícios, dentre outras. E, entre as novas disposições limitadoras de direitos, encontrava-se o marco decadencial de dez anos em comento, agora rechaçado pelo STF.
O relator, Ministro Edson Fachin, cujas conclusões permearam o resultado derradeiro do julgamento (cujo trânsito em julgado ainda não ocorreu, por conta da oposição de Embargos de Declaração), inferiu ser, a Previdência Social, um direito fundamental, o qual figura como um meio de garantir a Dignidade da Pessoa Humana e o mínimo existencial. Ainda, asseverou que a norma questionada, trazida pela novel legislação, comprometia núcleo essencial do Direito Fundamental ao benefício previdenciário e à própria Previdência Social.

possibilidade de fixação de prazo decadencial em si é admitida em alguns casos, tais como a revisão de valores finais do benefício e a forma de cálculo, como referido na própria decisão, ao citar o julgamento do RE 626.489.
O Acórdão do importantíssimo julgamento ora debatido, favorável aos segurados do RGPS, restou assim ementado:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADI. DIREITO CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. MEDIDA PROVISÓRIA 871/2019. CONVERSÃO NA LEI 13.846/2019. EXAURIMENTO DA EFICÁCIA DE PARTE DAS NORMAS IMPUGNADAS. PERDA PARCIAL DO OBJETO. CONHECIMENTO DOS DISPOSITIVOS ESPECIFICAMENTE CONTESTADOS. ALEGAÇÃO DE PRELIMINARES DE ILEGITIMIDADE ATIVA, IRREGULARIDADE DE REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL E PREJUDICIALIDADE SUPERVENIENTE. INEXISTÊNCIA. PRECEDENTES. MÉRITO. ALEGAÇÃO DE INOBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS CONSTITUCIONAIS DE RELEVÂNCIA E URGÊNCIA. INEXISTÊNCIA. CONTROLE JUDICIAL DE NATUREZA EXCEPCIONAL QUE PRESSUPÕE DEMONSTRAÇÃO DA INEQUÍVOCA AUSÊNCIA DOS REQUISITOS NORMATIVOS. PRECEDENTES. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DO ART. 24 DA LEI 13.846/2019 NO QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 103 DA LEI 8.213/1991. PRAZO DECADENCIAL PARA A REVISÃO DO ATO DE INDEFERIMENTO, CANCELAMENTO OU CESSAÇÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. OFENSA AO ART. 6º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL AO COMPROMETER O NÚCLEO ESSENCIAL DO DIREITO FUNDAMENTAL AO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO E À PREVIDÊNCIA SOCIAL.

  1. A ação direta está, em parte, prejudicada, pois não incluído o art. 22 da MP 871/2019 pela Lei 13.846/2019. Conhecida a demanda apenas quanto aos demais dispositivos na ação direta impugnados. Precedente.
  2. Ante a ausência de impugnação específica dos arts. 23, 24 e 26 da MP 871/2019 no decorrer das razões jurídicas expendidas na exordial, deve o conhecimento da demanda recair sobre os arts. 1º a 21 e 27 a 30 (alegada natureza administrativa) e 25, na parte em que altera os arts. 16, § 5º; 55, § 3º; e 115, todos da Lei 8.213/1991 (dito formalmente inconstitucional), assim como na parte em que altera o art. 103, caput, da Lei 8.213/1991 (alegada inconstitucionalidade material). Precedente.
  3. A requerente juntou posteriormente aos autos o extrato de seu registro sindical junto ao Ministério do Trabalho e a procuração com outorga de poderes específicos para a impugnação do diploma objeto da presente ação direta. Por se tratarem, pois, de vícios processuais sanáveis, não subsiste, na medida em que reparados, a apreciação das preliminares de ilegitimidade ativa e de irregularidade de representação. Precedente.
  4. Em relação à preliminar alusiva ao dever da requerente de aditar a petição inicial em decorrência da conversão legislativa da medida provisória, inexistente modificação substancial do conteúdo legal objetado, não há falar em situação de prejudicialidade superveniente da ação. Precedente.
  5. O controle judicial do mérito dos pressupostos constitucionais de urgência e de relevância para a edição de medida provisória reveste-se de natureza excepcional, legitimado somente caso demonstrada a inequívoca ausência de observância destes requisitos normativos. Ainda que a requerente não concorde com os motivos explicitados pelo Chefe do Poder Executivo para justificar a urgência da medida provisória impugnada, não se pode dizer que tais motivos não foram apresentados e defendidos pelo órgão competente, de modo que, inexistindo comprovação da ausência de urgência, não há espaço para atuação do Poder Judiciário no controle dos requisitos de edição da MP 871/2019. Precedente.
  6. O núcleo essencial do direito fundamental à previdência social é imprescritível, irrenunciável e indisponível, motivo pelo qual não deve ser afetada pelos efeitos do tempo e da inércia de seu titular a pretensão relativa ao direito ao recebimento de benefício previdenciário. Este Supremo Tribunal Federal, no RE 626.489, de relatoria do i. Min. Roberto Barroso, admitiu a instituição de prazo decadencial para a revisão do ato concessório porque atingida tão somente a pretensão de rediscutir a graduação pecuniária do benefício, isto é, a forma de cálculo ou o valor final da prestação, já que, concedida a pretensão que visa ao recebimento do benefício, encontra-se preservado o próprio fundo do direito. No caso dos autos, ao contrário, admitir a incidência do instituto para o caso de indeferimento, cancelamento ou cessação importa ofensa à Constituição da República e ao que assentou esta
  7. Corte em momento anterior, porquanto, não preservado o fundo de direito na hipótese em que negado o benefício, caso inviabilizada pelo decurso do tempo a rediscussão da negativa, é comprometido o exercício do direito material à sua obtenção.
  8. Ação direta conhecida em parte e, na parte remanescente, julgada parcialmente procedente, declarando a inconstitucionalidade do art. 24 da Lei 13.846/2019 no que deu nova redação ao art. 103 da Lei 8.213/1991.

A decisão da Suprema Corte adquire suma importância no cenário jurídico-pátrio, haja vista garantir a concretização do direito fundamental à Previdência Social, este inserido no rol dos direitos de segunda dimensão, cujo núcleo essencial é “imprescritível, irrenunciável e indisponível”. Logo, nem o tempo e nem a inércia do titular do direito vindicado poderão ter o condão de obstaculizar o acesso aos benefícios ofertados pela Seguridade Social, pontualmente, pela Previdência.

Nesta senda, dentre os princípios constitucionais ínsitos à Seguridade Social, destacam-se o da Universalidade da cobertura e do atendimento: “Por universalidade da cobertura entende-se que a proteção social deve alcançar todos os eventos cuja reparação seja premente, a fim de manter a subsistência de quem dela necessite” (LAZZARI, João Batista, 2017, p. 89). A decisão resultante do julgamento da ADI nº 6096 se coaduna com este primado, fortalecendo a tendência protecionista buscada por militantes da advocacia e operadores do Direito, garantindo o acesso à Justiça, apesar da aparente ausência de interesse de agir do titular do beneplácito, ocasionada, não raras vezes, pela hipossuficiência e desconhecimento jurídico-normativo.

Em se tratando, o direito à Previdência, de um direito fundamental (estabelecido como tal no Título II da Carta da República), justifica-se a impossibilidade de permitir que este reste limitado por uma norma infraconstitucional, instituidora de um decurso de prazo, tão maléfica ao titular do direito que acarretaria o aviltamento de outros direitos intocáveis, como à vida, saúde, à dignidade da pessoa humana, dos quais restaria privado o segurado, justamente por não ter exercido, em tempo oportuno, o requerimento judicial respectivo, independentemente de suas razões para tanto. Ademais, o princípio da distributividade, ainda que indiretamente, também acaba sendo promovido com a queda do prazo decadencial decenal, pois salvaguarda a garantia de distribuição de renda, bem-estar social e justiça social (Art. 193: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”).

Além da repristinação da redação anterior do artigo 103 da Lei 8.213/91, após o julgamento reconhecendo a inconstitucionalidade da limitação decenal que fora impingida ao texto legal, o verbete sumular número 81 da Turma Nacional de Uniformização ganha novo fôlego de vida, pois, conforme bem elucidou Amado (Frederico, 2019, p. 604), a novel redação conferida ao caput do artigo 103 pela Lei 13.846/2019 anunciou o fim da aplicabilidade da súmula por vincular o indeferimento do benefício ao prazo decadencial de dez anos:
Súmula 81 TNU: “A impugnação de ato de indeferimento, cessação ou cancelamento de benefício previdenciário não se submete a qualquer prazo extintivo, seja em relação à revisão desses atos, seja em relação ao fundo de direito”.

Pontua-se, a título de argumentação, que antes vigorava a redação da súmula 64 da TNU, cujo texto elucida bem a antiga tendência jurisprudencial de se optar pela imprescindibilidade de fixação de marco decadencial para fins de revisão de indeferimento de benefício previdenciário ou assistencial, como segue elucidado:
Súmula 64 da TNU: “O direito à revisão do ato de indeferimento de benefício previdenciário ou assistencial sujeita-se ao prazo decadencial de dez anos”ii.
A obtenção e o gozo do direito em si não poderão ser rechaçados por uma norma limitadora infraconstitucional, considerando ser este o núcleo essencial do fundo de direito; desta forma, retorna-se ao cenário existente antes da vigência da Medida Provisória 871 de 2019. O julgamento favorável aos segurados e beneficiários do sistema de previdência do Regime Geral é de suma importância, principalmente porque a tendência jurisprudencial era a de adoção de marcos decadenciais (ex vi, julgamentos pelo Superior Tribunal de Justiça dos temas 975iii e 966iv), além de decisão do próprio STF acerca do Tema 313 (Repercussão Geral)v, cujo objeto era a possibilidade de aplicação de marco decadencial aos benefícios anteriores à edição da MP 1.523/97. Neste último julgamento, restou decidido que, para fins de concessão, o prazo decadencial entabulado pela referida Medida Provisória não seria aplicável, enquanto que, para a revisão de benefícios, sim, “inclusive os anteriores ao advento da Medida Provisória 1.523/1997”.
Em suma, o resultado do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6096 representa uma importante conquista aos segurados e beneficiários da Seguridade Social, eis que rechaça a restrição normativa decenal para ajuizamento de ação visando à revisão dos atos administrativos previdenciários de indeferimento, cessação, restabelecimento ou de revisão de benefícios, reconhecendo-lhe a inconstitucionalidade. O decisum, até o presente momento, não transitou em julgado, em razão da oposição de Embargos de Declaração pela Advocacia-geral da União, pendentes de julgamento.

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