A Auditoria Interna e Controle Governamental tem papel fundamental para a manutenção da integridade pública em suas diversas áreas de abrangência, sendo uma ferramenta indispensável em momentos de insegurança e instabilidade. A análise de riscos e a busca de soluções para o controle e bom funcionamento dos serviços públicos fazem parte da rotina da profissão, tornando a Auditoria Interna e Controle Governamental uma área de destaque para quem busca transformar a gestão pública e garantir a sua eficiência. 

Um exemplo que deixa claro a importância do Auditor Interno é a sua atuação durante a pandemia para análise de riscos e controle da transparência e efetividade das ações públicas. Por este motivo, hoje trouxemos para você o artigo do Doutor  em Políticas Públicas Marcus Vinicius de Azevedo Braga, autor do livro “Tudo sobre controle” e professor do curso de Auditoria Interna e Controle Governamental da Verbo Jurídico. 

“Vacina de vento” e os riscos de integridade

Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Doutor em Políticas Públicas (UFRJ) 

Autor do Livro “Tudo sobre controle”, Ed. Fórum. 

Em tempos que os escritórios de advocacia têm sido invadidos pelo tema do compliance, verifica-se que as discussões recentes têm convergido para a importância do processo de gestão de riscos na temática da integridade, transcendendo-se o modelo de se fazer códigos de conduta descontextualizados do perfil de riscos das organizações, o que pode onerar a mesma com salvaguardas não efetivas, comprometendo a credibilidade das ações de integridade em um futuro bem próximo, vistas como burocracia pouco efetiva.

No presente artigo será discutido uma proposta de matriz para a análise dos riscos de integridade, tomando como base os conceitos apresentados pela ABNT NBR ISO 31000, trazendo, de forma didática, essa discussão para um exemplo contemporâneo da política de Saúde, a questão da “vacina de vento” de Covid-19, ou seja, a casuística de se aplicar seringas vazias simulando a imunização real, que teve grande repercussão na imprensa. 

A fase inicial da gestão de riscos é a identificação destes. O risco é uma possibilidade de ocorrer algo que afete adversamente os objetivos, e essas possibilidades precisam ser enumeradas, em um inventário de riscos, de extrema relevância, dado que o risco que nesse momento não comparece, não é tratado, o que não o impede de se materializar no futuro.

Certamente, no que se refere aos riscos de integridade, eles não são tão fáceis de se levantar, e tendo como base os métodos apresentados na norma específica, a ISO 31010, de um modo geral se procede um brainstorming, uma coleta de informações oriunda de diversas fontes, sobre as possibilidades de ocorrência de corrupção, e essas informações são sistematizadas, podendo beber de ocorrências de outras organizações, de processos similares, em uma via de aprendizagem organizacional.

No caso da aplicação de vacinas de Covid-19, pode-se listar, para fins didáticos, riscos de integridade na linha de: i) subtração ilícita de vacinas estocadas para a comercialização; ii) aplicação simulada para desviar as doses; iii) vacinação de não elegíveis por laços de amizade ou para a obtenção de vantagens; e iv) falsificação de doses para troca por doses verdadeiras. Esses são apenas alguns dos riscos possíveis, espelhados no que se viu na imprensa.

A identificação desses riscos é central para esse processo subsequente de análise. Segundo Silver (3), ignoramos os riscos mais difíceis de se aferir, mesmo quando relevantes. Faz-se necessário relacionar os riscos de corrupção com o mundo real, com visões múltiplas, fugindo de narrativas fantasiosas. O histórico de ocorrências que já se deram em processos similares é uma fonte valiosa, pois a última fraude inédita no Brasil foi na esquadra de Pedro Alvares Cabral. 

Após a identificação do risco, para fins desse texto, será escolhido o risco de aplicação simulada para desviar as doses, a chamada pela imprensa de “Vacina de vento”. O exercício é fazer a análise desse risco, para através desse aspecto central do processo de gestão de riscos de integridade, verificar-se como é possível se desdobrar o seu tratamento em salvaguardas efetivas e que mitiguem esse risco, de forma adequada. 

Segundo a ISO 31000, a análise do risco se detém a compreender o risco, de modo a fornecer subsídios para a sua avaliação, e consequentemente, para o seu tratamento. Interessa compreender que fatores podem afetar os objetivos da organização, e no caso em comento, os fatores relacionados a integridade, ou seja, ao desvio de conduta de agentes, na execução de atos corruptos. 

Essa análise decompõe o risco em “causa”, ligada a probabilidade de ocorrência; e a “consequência”, relacionada ao impacto nos objetivos da organização, quando o risco se materializa. No caso específico da integridade, é possível se combinar essa análise com as discussões de Cressey (2) e os estudos recentes de Dan Ariely (1), conforme a tabela a seguir, para se ter um referencial para a análise desses riscos:

CausaConsequência
Tipologia do triângulo da FraudeAspecto estruturalAspecto individualEfeito da ação corruptaDesdobramento nos objetivos organizacionais
PressãoDerivada de Função com grande autonomia Oriunda de perfil sociofamiliarfragilizado frente as possibilidades de ganho ilícitoImagem da organizaçãoAfeta a credibilidade e a capacidade de obter apoio político e financeiro futuro
RacionalizaçãoCultura de integridade dúbia, na qual é possível a auto manipulação dos valores que suportam as decisõesTem como fonte processos opacos aos pares, e que não possibilitam a sanção do grupo pela percepção de condutas não aderentesPerda financeiraSujeita a punição dos dirigentes e redução da capacidade operacional pela falta de recursos
OportunidadeSistema de controles internos da organização débil, com pouca transparência, fiscalização, e baixa formalização de procedimentosO agente dispõe da capacidade técnica e da legitimidade de fazer, percebendo a baixa probabilidade de ser detectado Desvio da ação finalísticaSujeita a sanção, inclusive na esfera política-eleitoral, e o não atingimento das finalidades da organização, prejudicando a gestão da política pública, e a população beneficiária. 

Com essa régua, adaptada ao risco de integridade, é possível se compreender esses riscos, para a construção de salvaguardas mais efetivas e menos onerosas, que atuarão na mitigação das causas e das consequências. No risco escolhido como exemplo é possível se fazer a análise como se segue.

No que se refere a causa, o que leva a materialização desse risco, pela tabela proposta, no quesito “pressão”, é a autonomia técnica do aplicador de vacinas na execução da tarefa, associado a perfil de salários baixos e o chamamento de um mercado paralelo de vacinas. A mitigação seria pela utilização de dois vacinadores juntos, com a restrição a agentes com histórico de irregularidades, e revezamentos periódicos e inopinados dos agentes.

Em relação a racionalização, as probabilidades derivam de uma dubiedade dos agentes em relação a ética, pela argumentação de que minha família e eu estamos expostos e necessitamos ser compensados, financeiramente ou com vacinas, o que demanda regras claras de condutas, bem justificadas e contextualizadas, para que os agentes entendam a importância de sua ação aderente e que percebam a legitimidade da vacinação. 

Ariely (1) apresenta a tensão entre o agente querer olhar no espelho e se ver honesto, com a vontade de se beneficiar da trapaça, e segundo esse autor, se conseguimos trapacear e ainda mantemos a nossa fama de probo, o incentivo é maior a manter a conduta ilícita. Por isso, na racionalização, é importante que além de regras claras, estas sejam discutidas no grupo, para que a visão de si mesmo do desviante seja construída nesse referencial coletivo da equipe. 

No quesito oportunidade, tem-se as fragilidades da governança do processo de vacinação, da falta de controles formais, de recibos, bem como da transparência dos atos e da possibilidade de ser objeto de auditorias sistemáticas, e ainda, de contar com um bom canal de denúncias. Ao pensar o processo de vacinação, o gestor deve analisar o processo e pensar que mecanismos ele teria necessidade para coibir abusos, e nesse caso, permitir a filmagem da vacinação, colher dados de e-mail e telefone dos vacinados para verificações futuras, e recolher as ampolas vazias, são algumas das salvaguardas possíveis e que reduzem a oportunidade de fraude.  

No campo das consequências, uma vez que aflora um escândalo dessa natureza, que afeta a imagem da organização pública e todo o programa de vacinação, que funciona em uma lógica nacional, é interessante que para além das medidas investigativas e punitivas tão populares, que se informe a população os reforços nos controles internos adotados para que isso não ocorra em outras unidades básicas de saúde, e que será realizada uma busca ativa nos suspeitos de vacinação falsa, para exame de anticorpos e reaplicação, resgatando assim a confiança de que aquele caso foi corrigido e se traduziu em mudanças perceptíveis no processo. 

A gestão de riscos de integridade, que tem grande centralidade na fase de identificação e, principalmente, na análise dos riscos, deve ser parte integrante de todo o processo de formulação de uma política, mesmo que emergencial, pois os escândalos advindos, além de afetar a confiança no processo, podem, pela via da apuração, paralisar as ações de vacinação, o que no contexto da pandemia, é extremamente indesejável. 

Uma boa análise dos riscos de integridade precisa dialogar com a natureza da corrupção no contexto das políticas públicas, buscando se aproximar da concretude desse processo, para que disso derivem salvaguardas efetivas, que deem tranquilidade a população e aos gestores, evitando consequências judiciais, sempre onerosas. A corrupção é um fato, um risco presente nas relações. Exatamente por isso devemos combatê-la de forma sistemática e racional, com o mínimo de prejuízos possíveis a política. 

Referências:

(1) ARIELY, Dan.  A Mais Pura Verdade sobre a Desonestidade. Rio de Janeiro: Campus / Elsevier, 2012, 260p.

(2) CRESSEY, D. R. Other People’s Money: A study in the social psychology of embezzlement. Glencoe, IL: The free press, 1953.(3) SILVER, Nate. O Sinal  e  o  Ruído:  Porque  Tantas  Previsões  Falham  e  Outras  Não. Rio de  Janeiro:  Intrínseca, 2013.

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